A mídia que estupra
Quem não se lembra do filme The Accused (1988 –
Jonathan Kaplan), protagonizado por Jodie Foster, que consagrou a atriz
por uma interpretação notável? Filme aclamado pela crítica, impactante e
polêmico em sua essência, narra a história de uma jovem, Sarah Tobias,
que, após uma noite de diversão com as amigas, é estuprada por vários
homens nos fundos de um bar. No desenrolar da trama, com o auxílio de
uma advogada, Sarah, que no início é vista como “responsável” pela
violência, consegue a condenação de seus agressores, reafirmando a tese
de que, independente do flerte, da bebida, das roupas ou de qualquer
outra coisa, estupro é sempre estupro.
No enredo, vitoriosamente prevalece a máxima: sim significa sim e não
significa não! Durante o julgamento, entretanto, outros agravantes
foram mobilizados pela advogada para condenar também os cúmplices
daquele terrível caso: o estupro de Sarah morbidamente contou com uma
platéia entusiasmada que, aos gritos, incitava o ato de violência. A
cada novo agressor, a platéia pedia “bis”.
Para quem esteve ligado nas redes sociais no último domingo
(15/01/12), sabe que a lembrança do filme não é fortuita. Desde ontem, o
assunto do suposto estupro sofrido por Monique em rede nacional no Big
Brother Brasil não sai de nossas cabeças e nem de nossas timelines. A
cena, para quem viu no paperview, enoja, deprime e indigna. Uma mulher,
desacordada e vulnerável, tem o seu corpo violado e invadido por alguém
que, ao que tudo indica, não foi convidado.
Aparentemente sem consciência e sem meios de reagir, a vítima estava
entregue ao seu agressor, Daniel, em frente às câmeras, à equipe técnica
e à enorme platéia do outro lado da televisão e do computador. Aquilo
que era feito nos fundos de um bar perde os seus “pudores” e se torna
diversão pública e explícita na TV.
Muitas questões têm surgido desde que a cena virou polêmica nacional:
Monique sabia o que estava acontecendo? Ela compartilhou as carícias de
Daniel? Houve sexo? Ela se lembra do que ocorreu? A despeito dos
comentários moralistas, machistas e misóginos – que me recuso a
discutir, pois já estou farta de tentar argumentar com quem insiste na
imbecilidade – outro fato me chamou a atenção: o papel da platéia nesse
“show de horrores”.
Quem estava presenciando a tudo e nada fez? A responsabilidade do
ato, além de Daniel, se ficar comprovado o estupro, deve ser estendida a
quem mais? Assim como os espectadores do estupro no filme The Accused, qual o papel da maior emissora de TV do país no caso?
Nas cenas do dia seguinte, Monique dava indícios de que não sabia
exatamente o que havia ocorrido na noite anterior. Intrigada, após ter
sido chamada no confessionário, pergunta à Daniel o que, de fato,
acontecera naquela noite. O brother nega o sexo, dizendo que foram
apenas beijos e umas passadas de mão, e claramente se esquiva do
assunto.
Monique, confinada em um reality show, sem contato com o mundo
exterior, não sabe que o Brasil discute seu suposto estupro.
Possivelmente violentada enquanto dormia, ela é também “violentada” pela
produção do programa, quando esta se nega a informá-la exatamente sobre
que está ocorrendo. Omissão grave, já que esta era a equipe a quem a
participante confiou sua segurança, ao aceitar participar do programa,
um ambiente teoricamente controlado e protegido por regras e parâmetros
de bom senso, garantidores, ao menos, da integridade física dos
jogadores.
Entretanto, a produção se abstém de dizer o que de fato está
acontecendo e deixa Monique, mais uma vez, à mercê de seu eventual
algoz. Embora ela tenha direito à verdade, ela continua indefesa na
escuridão, como a do quarto em que estava na noite de sábado,
permanecendo também na insegurança das camas compartilhadas do programa.
Daniel, já anteriormente acusado de ter se aproveitado de Mayara, segue
ileso pelos corredores da casa e sequer é questionado pelos
responsáveis do reality show. Monique parece ser vítima duas vezes.
Independente da posterior averiguação do caso e da condenação ou não
de Daniel, existe um cúmplice a quem não se pode negar a culpa: a Rede
Globo de Televisão. A emissora, na madrugada do domingo, reconheceu as
evidências de um possível crime (no plantão de notícias do paperview os
responsáveis pelo programa escreveram que estava “rolando um clima”, mas
que a “loira não se mexia”), se utilizou dessas evidências para
alavancar o seu ibope, incitando os telespectadores a continuarem a
assistir às cenas, mas, em momento algum, tentou (ou desejou)
interromper o ato.
No dia seguinte, diante da polêmica e dessas evidências, se absteve,
ainda, de revelar à Monique o que ocorrera, negando assim o direito
essencial da participante de decidir se devia prestar queixa à polícia
ou não. Os produtores, cúmplices da suposta violência, ao esconderem as
cenas de Monique, negaram-lhe, entre outras coisas, o direito de
realizar o exame de corpo de delito, instrumento fundamental na
comprovação da agressão. E quem se responsabilizará por isso?
O histórico de barbaridades no BBB já não é novo, mas quais serão os
limites do programa após um suposto estupro em cadeia nacional? Como
será interpretada pelas autoridades públicas e pelos telespectadores a
omissão da Globo diante do caso? A emissora, de forma tirânica e
desleal, seguiu com o espetáculo, reduzindo o episódio, através de seu
fiel porta-voz, Pedro Bial, a “muito amor”. Através de uma edição
impregnada de machismo e, por que não, de moralismos arcaicos, deixou
Monique à mercê da situação e sequer prestou contas ao público, que
ainda debate intensamente nas redes sociais a saída/punição de Daniel.
Como uma concessão pública, que serviços à comunidade são prestados por
essa emissora de TV? Qual a responsabilidade social da Rede Globo com
seus telespectadores? Ou ainda a pergunta que nos atormenta a cada dia: o
que tem sido e para quê tem servido a grande mídia no Brasil?
Nesse sentido, a pressão e as críticas dos brasileiros e
telespectadores é cada vez mais fundamental na mobilização de forças não
somente para a solução desse caso, mas também na construção de uma nova
mídia.
Ana Flávia C. Ramos
Eu vi a cena ao vivo, e não acredito que tenha sido estupro.
ResponderExcluirOs dois estavam igualmente bebados, a mulher não estava desacordada e nem mesmo entendeu o ato como um estupro.
A banalização do termo "estupro" e do conceito de violação é algo extremamente negativo para quem realmente ja foi vitima ou conhecem quem ja foi vitima de verdade desse tipo de situação.
Nos mulheres, a medida em que conquistamos o nosso inalienavel direito de escolha, também deveriamos ter assumido o onus das responsabilidades implicadas. Uma relação consensual não podem, a medida da conveniencia, ser tratada como estupro.
A mulher do BBB, que transou sob efeito de alcool, é tão responsavel pelo ato quanto o homem que compartilhou do mesmo momento.